17.11.09

Diário (P. II)

Puseram-me a pensar no tempo. Melhor: O professor José Rui pôs-me a pensar no tempo - E não, não estivemos a falar da chuva, nem do frio que piora as dores de coluna, da ponta da unha e faz doer os joanetes!
Fui levada naqueles raciocínios épicos que começam em "batatas" e acabam comigo a reflectir sobre "o Apocalipse", para aquela parte de mim que faz contagem decrescente para o Caminho. Quero caminhar, e sentir de novo a vontade de regressar para casa.
Mas voltando ao tempo - Há uns tempos, pedi ao meu tio "Os irmão Karamazov" de Dostoiévski.
Sempre que falamos de literatura ele pergunta-me " Já leste a Odisseia?", " Não tio, não li..." " E a ilíada? ". E começa-se a conversa teimosa da praxe. Ele a teimar por bem, eu a teimar por teima.
O meu tio acha que só perceberei verdadeira e intrinsecamente as grandes obras da literatura mundial depois de ler Homero, porque "a Odisseia de Homero é o alicerce fundamental da literatura ocidental".
Dei por mim a dizer que não lia a Odisseia porque não tinha tempo.
Não tinha tempo? Claro que tenho tempo, temos todos tempo.
O tempo faz-se, faz-se tempo! O tempo cultiva-se, treina-se, pára-se e perdura-se.
O tempo é o tempo, é sempre o mesmo tempo - O tempo que corre mas que está parado. O que varia é a maneira estúpida como o encaramos.


Publico hoje uma outra página de diário. Escrita, na altura, quase por encomenda depois da leitura da primeira. Foi-me pedido um texto que mostrasse a dualidade característica de um diário.


22 de Outubro de 2008
Meu diário,

Fiel companheiro de insónias, costumo confiar-te o sabor a novos mundos - os meus. Aqueles que experiencio em viagens insólitas. Na realidade sempre foi fácil, visto que o que descrevia era sempre o sabor a algo. Não o sabor a tudo, não o sabor de um mundo que reunia todos os elementos numa essência perfeita. Desta vez, para mim, até pensar sobre isto é complexo.
A forma como, em segundos, tudo em meu redor se condensou em espessas e pesadas gotas, atraídas pela gravidade e levadas para o submundo.
No fim, era só eu - leve e segura. Era só eu - feliz.
Nada mais existia porque nada mais havia para existir. Ali, assim, só eu fazia sentido. E aí está, para mim, o impensável: Num espaço vazio, habitado por ninguém mais senão eu, senti pela primeira vez sabor a tudo. E era tudo tão bom. Senti o sabor a mim, e comecei a amar.
Percebo agora que o expoente da existência está em sentirmo-nos bem quando nada mais existe. Está no sabor a tudo, quando já sentido estando sós. E esta é a platónica perfeição. A perfeição que na verdade é imperfeita. Porque nos permite o sabor a tudo, mas apenas quando estamos bem com o nada.
No meu regresso venho uma pessoa diferente, uma pessoa melhor. Pronta para novos mundos. Em busca de, no fundo, compor melhor o meu.
Prometo levar-te comigo. Afinal , que mais és senão uma parte de mim ?
Boa noite, meu diário. Boa noite.

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