27.12.09

As feridas

Ontem compôs-se isto na minha cabeça, já estava eu deitada de luzes apagadas.
Com medo de o perder nas viagens da Noite, escrevi-o no telemóvel - é estranho isto !

Saboreio o teu sangue
na ponta da língua,
enquanto te lambo as feridas,
desprovidas ainda de crostas
e do esquecimento.

Incomoda-me reparar em como mastigas, ruminante, os restos das tuas lutas de galos.
Mesmo assim, eu lambo-te as feridas.

Hoje, quando o re-li, lembrei-me do primeiro poema que li do Melopeia.
Foi engraçado - Abri o livro ao acaso, e fui ter à página 23 (o 23 parece bruxedo no meu quotidiano) e li isto:
Lambe-me as feridas na lenta
passagem das horas, porque a elegia
é apenas uma percepção esquiva
do tempo e nós nómadas sulcando
vagamente os equinócios, como êmbolos
crescendo, esparsos em superfícies
excessivamente mensuradas
em atlas anatómicos. Lambe-me
as feridas que eu sou como um choupo
reclinado sobre a remissão da tua saliva
e o devir é um espasmo onde sofro
a espera da cura, a travessia incomensurável
da distância. Lambe-me as feridas porque
sinto a fluidez de raízes nas plantas dos pés
e substâncias voláteis nas extremidades
das mãos. Mastigo a esperança
nos dias do exílio, porque só a tua presença
é um lugar à medida da tua solidão.

José Rui Teixeira

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